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“Crianças na igreja”, um curioso relato de Philip Yancey

Deguste um trecho da autobiografia de um dos mais prestigiados autores cristãos da atualidade e saiba mais sobre o lançamento que chega ao Brasil pela MC

Por Philip Yancey

Minha recém-lançada autobiografia, Onde bateu a luz, inclui algumas cenas da igreja que frequentei na minha infância perto de Atlanta. Como elas se comparam às cenas do que você viveu quando era criança?

Meu mais extraordinário  culto vespertino dominical acontece quando o Dr. M. R. DeHaan, um astro do rádio de Michigan, nos visita para uma conferência de fim de semana. É como a final do campeonato mundial da igreja. Chegamos cedo para achar onde estacionar, e mesmo assim temos de caminhar muito. Tanta gente nova aparece naquela noite de domingo que Marshall e eu temos a permissão de nos juntarmos aos adolescentes na galeria geralmente fechada. Tenho a sensação de estar num estádio de esporte, olhando por sobre todas as cabeças carecas e os chapéus das mulheres, com o coro e o pregador lá longe à distância.

Na plateia embaixo, centenas de leques estão ondulando, como agitadas ondas do oceano. São pedaços de papelão afixados ao que parece ser o palito de um picolé, e a pessoa agita o leque na frente de sua cara para criar uma brisa. O lado da frente do leque tem uma imagem: Cristo no Getsêmani ou o Bom Pastor ou talvez uma foto de nossa igreja. O lado oposto tem o anúncio de uma empresa funerária.

Os adolescentes sentados perto de mim decidem editar os anúncios funerários. A capela com ar-condicionado acrescentam “Não deixa o cadáver feder”. Ao lado de serviço de ambulância escrevem “Oops, tarde demais”, e ao lado de oxigênio 24 horas por dia acrescentam “Bem quando não precisamos dele”. Passamos a maior parte do sermão do Dr. DeHaan competindo para apresentar as melhores frases. Marshall sugere um lema que engloba tudo para referir-se à funerária: “Sempre a postos para pôr todo mundo para baixo”.

Depois do sermão, nosso pastor anuncia que vamos fazer uma “coleta de amor” para o Dr. DeHaan. Enquanto os guias se espalham pelo santuário, um dos adolescentes mais arruaceiros deixa cair dois M&Ms na plateia abaixo de nós. Alguns minutos depois, ele propõe deixar cair um alfinete direto na cabeça de um careca. No mesmo momento, outro adolescente “acidentalmente” derruba do parapeito uma cesta cheia de esmolas. Notas de papel flutuam no ar, impelidas para cima e para baixo pelos ventiladores do teto, e centenas de moedas rolam ruidosamente pelo chão inclinado da plateia. Algumas moedas encontram as grades do aquecimento e caem dentro delas com um sonoro plink! O pastor faz carrancas horríveis e os diáconos sobem correndo os degraus da galeria para reestabelecer a ordem.

Essa é a última vez que sentamos na galeria.

***

Os cultos da igreja em geral terminam com um convite. Com todas as cabeças abaixadas e todos os olhos fechados, ouvimos o pastor ou o evangelista fazer uma súplica para que aqueles que não foram salvos aceitem Cristo. “Vocês não vão para o céu por serem bons. Nem mesmo por frequentarem a igreja. Só há um jeito, meus amigos, e vocês podem fazer isso neste exato momento. Talvez alguém aqui não tenha certeza de que vai para o céu. Meu amigo, este é o dia de salvação. Levante a mão se você a deseja. Sim, sim, estou vendo aquela mão. Abençoada seja. Sim, por todo este salão… Deus abençoe vocês, sim, sim.”

Como um mosquito esvoaçando ao meu redor, as palavras do orador parecem chegar cada vez mais perto, e meu sentimento de culpa se avoluma. “Você tem certeza de que seus pecados foram lavados de vez? Talvez você esteja pensando: ‘Pregador, eu vou ter certeza algum dia, mas por enquanto não. Deixe que me divirta por um tempo, deixe que eu dissemine minhas ervas daninhas’. Ou vocês jovens: ‘Talvez depois do fim das aulas neste verão…’” O medo me cerca cada vez mais, apertando o coração e os pulmões.

O órgão ataca, e em uníssono cantamos hinos. “Manso e suave, Jesus convidando / Chama: Vem, pecador, vem!” Como as cruzadas de Billy Graham no rádio, esses convites terminam com o hino “Tal qual estou”. Cantamos todas as sete estrofes. A terceira estrofe é a que me impressiona:

Tal qual estou, atribulado

Luto e duvido calado,

Temores por todo lado,

Cordeiro de Deus, cá estou.

Nada me perturba mais do que saber se estou realmente salvo. Repeti a Oração do Pecador tantas vezes que posso soletrá-la de rabo a cabo. Dou meu passo para a frente e recebo as orações dos anciãos da igreja enquanto fico com as mãos entrelaçadas e os olhos firmemente fechados. Faço isso de novo, várias vezes, temeroso de que a salvação seja como uma vacinação que pode não pegar. Apesar disso, não consigo nunca silenciar as importunas perguntas: Será que estou levando isto a sério de verdade? Isto é genuíno?

***

Finalmente, quando completo dez anos, a mãe decide que estou pronto. Tripudio sobre Marshall, que teve de esperar até completar onze anos. Primeiro, sento-me durante um nervoso encontro com o Irmão Paul Van Gorder em seu escritório forrado de livros. Ele se reclina em sua cadeira de couro do outro lado da escrivaninha e pergunta: “O que significa o batismo para você, Philip?”. Recito a resposta correta que ensaiei: “Quero tornar pública a mudança que aconteceu dentro de mim quando aceitei Jesus em meu coração”.

“Acredito que Deus tem grandes coisas reservadas para você, Philip”, diz ele. “O batismo é sagrado. É permanente, sem volta. Não se batize se não estiver preparado para comprometer-se pelo resto da vida.” Engulo seco, e tenho a sensação de que alguma coisa está presa na garganta. Finjo ser forte, acenando que estou preparado.

Nossa igreja planeja os batizados para o culto vespertino de domingo. Atrás da plataforma, cortinas escondem um batistério embutido na parede central, e nas noites de batismo as cortinas se abrem revelando uma banheira com um degrau e no fundo uma pintura do rio Jordão.

Quatro de nós somos batizados na mesma noite. Depois do sermão, o coro começa a cantar um hino, e nós quatro nos encaminhamos para o vestiário. Estamos descalços, e o pastor entrega a cada um uma túnica branca. Embora o recinto não seja frio, eu tremo enquanto visto a túnica sobre a camiseta e calças brancas.

O Irmão Paul revê as instruções. “Segurem minha mão e não a soltem. Não se preocupem, eu seguro vocês. Vou trazê-los para cima. Simplesmente relaxem.” Eu digo a mim mesmo para relaxar, mas não sei como.

A solene cerimônia começa. Observo com o canto do olho quando duas mulheres desaparecem embaixo d’água e reaparecem com o cabelo pingando e finas túnicas grudadas a suas roupas brancas embaixo.

É estranho ver mulheres adultas tornando-se flácidas nos braços do pastor. Uma delas está chorando, com marcas negras escorrendo dos olhos. Sinto cheiro de mofo vindo do batistério e ouço um zunzum nos ouvidos. O coração está deslizando incerto no meu peito. E se as pessoas puderem ver através de minha roupa? E se eu me soltar e me afogar? Não paro de pensar que preciso ir ao banheiro, mesmo tendo acabado de ir. Concentro-me em pensamentos santos em vez disso.

Irmão Paul acena para mim, e eu entro na água que está fria o bastante para me fazer aspirar bruscamente. Tento segurar a respiração e controlar os dentes, que batem de frio. “Em obediência à ordem de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, e baseado na profissão de sua fé nele, Philip, eu o batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.”

De repente estou debaixo d’água, os olhos firmemente fechados, sentindo uma forte mão nas costas e outra apertando-me as narinas, meus braços cruzados diante de mim. Em seguida, volto à tona e encho os pulmões. Acabou, foi só isso. Dirijo-me para os degraus sobre pernas que parecem não ter articulações.

“Agora caminhe em novidade de vida”, diz o pastor, e meio que me empurra degraus acima…

O trecho que você acaba de ler foi extraído do livro Onde bateu a luz; (pgs. 70-71, 75-76,78-79); também publicado no blogue philipyancey.com. >>https://philipyancey.com/kids-in-church<< Reproduzido com autorização do autor.

Saiba mais!

A história de vida de um dos maiores autores cristãos da atualidade!

Em Onde bateu a luz, Philip Yancey apresenta uma narrativa autobiográfica peculiar, enquanto revela um segredo que o colocou na busca pela verdade sobre sua família e a cultura em que foi criado. Seu ambiente é uma América do pós-guerra em ebulição, em que o fundamentalismo religioso e o movimento dos direitos civis colidem.

Onde bateu a luz expõe matizes de um período crucial da história recente, com suas tensões, dilemas e contradições, em temas como: mudanças sociais, hostilidade racial, divisão política, guerras culturais… Mais do que revisitar contextos que reverberam nas divisões sociais e políticas de hoje, Onde bateu a luz põe em foco contrastes, em que a dor se entremeia com esperança de cura, perdão e redenção.

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Outros livros de Philip Yancey lançados pela MC:

A pergunta que não quer calar

Companhia na crise

O eclipse da graça

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