“O Senhor criou um ritmo: sono, sábado, jubileu, contemplação, trabalho. Nosso coração e nossos alvos podem ser alcançados ao encontrarmos um ritmo de vida de Deus para nós”, Rafael Balestra Cassiano (Rafael Pijama)
Por Rafael Balestra Cassiano (Rafael Pijama)
A chegada de um novo ano tende a mexer conosco. Em geral, ficamos mais reflexivos. Existem os que gostam de escrever metas, alvos, resoluções. Os que pensam, mas não escrevem. Os que, além de escrever, compram planners, canetas com cores diferentes e post-its. Há os que, passados poucos dias, não olham mais para seus objetivos.
Não sei como você entra nesse novo ano. A sensação é a de que os tempos mudam e transcorrem cada vez mais depressa. Buscamos discernimento para encontrar um ritmo adequado de vida. Muitos estão “buscando fôlego” para dar conta do que virá; outros estão tão distraídos, ou sobrecarregados, que não conseguem definir seu próprio momento. Há quem está adentrando um novo tempo sem ter tido condição de se recuperar do que passou.
A arte de cultivar o descanso
Cultivar o descanso é um tema intensamente discutido atualmente, seja por meio de livros, artigos, vídeos ou conferências. As novas dinâmicas de vida têm acontecido numa velocidade que nos faz sentir que não conseguimos acompanhar tudo. Os índices de depressão e burnout mostram que não temos conseguido encontrar descanso na vida. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é considerado o país mais ansioso do mundo.
Imagino que você e/ou pessoas que lhe são próximas estejam lidando com esses mesmos conflitos e desafios. E suspeito que parte da nossa frustração é que nos sentimos mais cansados, com menos condição para o repouso, mas não necessariamente produzindo mais, trabalhando bem e fazendo tudo o que pensamos que Deus nos chama a fazer.
Diante disso, me vem à mente um episódio de Jesus com seus discípulos que pode nos ajudar a lidar com tais dilemas e desafios:
Jesus e seus discípulos seguiram viagem e chegaram a um povoado onde uma mulher chamada Marta os recebeu em sua casa. Sua irmã, Maria, sentou-se aos pés de Jesus e ouvia o que ele ensinava. Marta, porém, estava ocupada com seus muitos afazeres. Foi a Jesus e disse: “Senhor, não o incomoda que minha irmã fique aí sentada enquanto eu faço todo o trabalho? Diga-lhe que venha me ajudar!”.
Mas o Senhor respondeu: “Marta, Marta, você se preocupa e se inquieta com todos esses detalhes. Apenas uma coisa é necessária. Quanto a Maria, ela fez a escolha certa, e ninguém tomará isso dela” (Lc 10.38-42, NVT).
Tive crise com essa narrativa por muitos anos. Como diz minha esposa, “eu era um legítimo advogado de Marta”. Como a maioria das pessoas com quem já tive e tenho a oportunidade de conversar sobre esse encontro de Jesus, sinto uma força de compaixão para com Marta. Afinal, vivemos numa dinâmica de atividades intensas, muitas tarefas, pragmatismo, resolução.
Contudo, quando estamos diante das Escrituras, precisamos nos submeter ao que o texto bíblico quer comunicar, entendendo que, se há algo difícil de aceitar, o problema somos nós. O Senhor, através do Espírito, haveria de me convencer de sua Palavra, que é a verdade. Por isso, durante muito tempo, não me dei por vencido diante das minhas inquietações com relação a essa história.
Dinâmicas do tempo e dinâmicas do reino
Ao olharmos para a narrativa, podemos notar que aquela era uma família incomum. A casa aparece nominada por Marta. O relato bíblico diz: “Marta os recebeu em sua casa”. Isso não era nada habitual naquela época. Nomear a casa pela mulher não costumava ser a forma como aquele povo se referia a uma casa em que vivia um homem — neste caso, Lázaro, irmão de Marta. Estudiosos creem que Marta tinha alguma proeminência social.
Marta era mulher forte e, provavelmente, multitarefas, articulada, desenvolta, de opinião e iniciativa. Percebemos essas possíveis características tanto no episódio descrito acima quanto no que Jesus chega ao local em que Lázaro estava morto. Ela vê Jesus antes mesmo de ele chegar em sua casa e o interpela com uma mistura de pesar, fé e culpa.
Marta não é apenas forte; é mulher de fé. Ela chama Jesus de Senhor, aparenta saber que ele tem poder para curar, e sabedoria, para orientar (no caso de dizer à sua irmã “o seu devido lugar”). Ainda assim, ao que parece, mesmo tendo fé, e entendendo o privilégio de receber Jesus em sua residência, Marta está mais marcada por dinâmicas do seu tempo, que com a dinâmica do reino de Deus.
Claro, não me sinto mais sábio do que ela. Quando tento me ver dentro daquela cena, penso que provavelmente eu não teria ido próximo a Jesus para falar do comportamento da minha irmã. Eu provavelmente teria falado alto, para todos ouvirem a “injustiça” que estava sendo cometida contra mim, e exporia minha irmã publicamente. Também estou tendo os olhos abertos para a dinâmica do reino de Deus enquanto avanço por esse novo e vivo caminho que Jesus nos apresenta.
Uma aclaração: Quando digo “dinâmicas do seu tempo”, refiro-me à expectativa em relação à mulher, aos costumes e ao padrão de hospitalidade. Por exemplo: naquele tempo e cultura, uma mulher não se sentava aos pés de um mestre, não havia discípulas. O que poderia estar na mente e no coração de Marta, como mulher dinâmica, era a questão do desempenho (faça e você será) ou a necessidade de causar boa impressão e prestar bom serviço. Já Maria, ao sentar-se aos pés de Cristo, adotara uma postura altamente subversiva para o seu tempo.
Além da superfície
O que creio que Jesus vê nessa cena, e na denúncia/indignação de Marta, é muito mais profundo do que comportamentos externos. Jesus, como aquele que se revela como especialista em corações, vê além do óbvio, da superfície, do evidente. Jesus chama atenção para o fato de que Marta estava com a alma inquieta. Não era somente uma questão de afazeres, tarefas e arrumações. Seu comportamento externo estava revelando um desajuste interno. Isso é muito comum em nossa vida.
Temos muitas questões para resolver, pensamos em várias soluções, cogitamos possibilidades, e tudo isso está numa esfera que ninguém vê, “dentro de nós”. Então alguém que não faz a menor ideia de como estamos “por dentro” resolve fazer uma brincadeira ou tece uma crítica à nossa possível distração, e nós reagimos desproporcionalmente por causa de nosso desajuste interno.
É comum percebermos essa atitude também em crianças, que ainda não conseguem elaborar em palavras ou conceitos próprios as emoções que sentem. Por causa desse desajuste interno, se irritam, choram, brigam e não conseguem dormir. Nossos desajustes internos muitas vezes se exteriorizam em comportamentos externos.
Coisas pequenas, segundas e terceiras…
Na mesma cena encontramos Maria. Ela, em contrapartida – e o texto faz questão de dizer isso quando usa a expressão “Marta, porém”, deixando claro o contraste das ações e, provavelmente, das intenções –, era capturada pela presença de Jesus. Maria estava envolvida de tal forma que as demais coisas se tornavam pequenas, segundas e terceiras...
Assim como Marta, sua irmã Maria participava da mesma cultura e também tinha responsabilidades com a casa. Sabendo nós que Jesus não exaltava a preguiça, o desdém e a má hospitalidade, podemos entender que Maria não padecia dessas falhas.
“Sabendo nós que Jesus não exaltava a preguiça, o desdém e a má hospitalidade, podemos entender que Maria não padecia dessas falhas.”
Rafael Pijama
E vemos essa mulher ousada, subversiva — ao que parece, sabedora do caráter de Jesus, sentando-se a seus pés. Ela sabia que poderia ser reprovada por sua cultura, pelas pessoas ao redor e pela irmã, mas tinha convicção de que não seria reprovada por Jesus. Maria muda o ritmo da vida na presença de Cristo. Ela é cativada por essa presença, e corresponde. Maria para. Maria descansa.
Aqui a beleza do evangelho nos salta aos olhos. Que coisa maravilhosa! Ao que tudo indica, ela percebe que, talvez, junto com sua irmã, havia procurado salvação em tantos lugares (aceitação cultural, autonomia, serviços, excelência, religião, costumes), e não a encontrara. Mas, agora, elas foram encontradas! Maria nos revela que, mesmo que achemos que estão “faltando coisas” em nossa vida ou a nosso redor, se Jesus está presente, não está faltando nada. Podemos nos aquietar a seus pés.
A partir daqui, me vêm perguntas à mente: o que captura nossa atenção? O que nos envolve que faz outras coisas se tornarem segundas, terceiras e últimas? Para alguns de nós, pode ser estabilidade, influência, mais dinheiro, um novo projeto, a próxima viagem, a nova temporada da série favorita. Somos capturados por aquilo que desejamos, amamos e valorizamos acima de outras coisas.
O que é capaz de mexer em seu ritmo? O que dita seu compasso? Seu encontro com Jesus mexe em sua agenda apenas para eventos religiosos (cultos, pequenos grupos e conferências) ou mexe em sua agenda no sentido de prioridades, escolhas, busca e significado?
Descanso: um princípio
Em nossa queda, queremos ser como Deus (oniscientes, onipresentes, onipotentes). O autor Jordan Raynor, no livro Redimindo o seu tempo (Pilgrim Books), traz esse insight, associando-o às nossas novas dinâmicas de vida. Ansiamos saber de todas as coisas e estar a par de todos os acontecimentos; buscamos informações de forma incessante e as compartilhamos em tempo recorde; tentamos estar em todos os lugares através de aplicativos e interações on-line, para, de alguma forma, exercer poder com tais informações e presenças.
Saiba mais aqui: Trabalho, propósito e descanso de Bernardo Cho
Mas Jesus, o Deus que se fez carne, quando habitou entre nós, se sujeitou aos limites da existência humana. Quando ele estava em um lugar, não estava em outro. Quando trabalhava muito, ficava cansado. Não sabendo tudo o tempo todo, buscava o Pai a todo tempo.
“Jesus, o Deus que se fez carne, quando habitou entre nós, se sujeitou aos limites da existência humana. Quando ele estava em um lugar, não estava em outro. Quando trabalhava muito, ficava cansado. Não sabendo tudo o tempo todo, buscava o Pai a todo tempo.”
Rafael Pijama
O Senhor criou um ritmo: sono, sábado, jubileu, contemplação, trabalho. A vida não pode ser vivida de qualquer jeito. Gênesis 1.1-31 nos mostra que o Deus que pode fazer tudo num estalar de dedos decide fazer um pouco a cada dia. Gênesis 2.1-3 diz que o Deus que não se cansa, “não dorme” , decide descansar depois de uma jornada de trabalho.
Períodos de folga e férias
Devemos separar dia, semana, mês e ano conforme o calendário e ritmo de Deus, mas isso requererá uma reorganização da agenda e, sem sombra de dúvidas, de prioridades, investimentos e presença. Estamos multiarefados, porém insatisfeitos com os resultados obtidos através do nosso esforço. Jesus nos convida a reorientar a vida e a desfrutar de sua presença. Nossos corações e alvos podem ser alcançados ao encontrarmos um ritmo de vida de Deus para nós.
O convite de Jesus para nós é para estarmos a seus pés, recebendo a graça de quem ele é, o descanso que só ele pode dar e a transformação de coração que só ele pode fazer. A presença de Jesus reorganiza e orienta o ritmo de vida ao ensinar qual é o sentido de uma boa vida. Aquietemo-nos diante dele, para seremos preenchidos de sentido, acalmando nossa vida, recebendo segurança.
Num mundo de agitação, convido você a cultivar o coração.
Sobre o autor:
Rafael Balestra Cassiano (o Rafael Pijama), marido da Yana Cassiano, pai do Victor e Aurora, pastor na Igreja Sal da Terra 90, coordenador do Movimento Mosaico, coautor do livro Igreja Sinfônica (Mundo Cristão), um felizardo homem de muitos amigos.
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Gestão do tempo, produtividade e espiritualidade
2 Comentário
Eva Mónica
Obrigada Rafael pela belíssima mensagem. Me abençoou muito!
Fábio Souza
Obrigado pela mensagem Rafael, estava precisando. Vivemos em uma época de agitação e traçamos muitos objetivos diários, semanais e de vida. É muito fácil deixarmos Cristo de lado, essa é a verdade. Mas bom quando encontramos algo que nos fala ao coração e nos leva a nos realinharmos. Cristo deve ser o centro de nossa vida e não apenas uma parte dela.