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“Nosso legado sujo”: Philip Yancey em texto sobre os absurdos da injustiça racial

“Nesta passagem adaptada de minha autobiografia, Onde bateu a luz, conto sobre meu gradual despertar para a injustiça racial. Infelizmente, isso significava aprender a desconfiar do que a igreja havia me ensinado”

Por Philip Yancey

No mês passado, visitei o Legacy Museum, em Montgomery, Alabama. Fundado por Bryan Stevenson, esse museu impressionante traça a história do racismo nos Estados Unidos, começando com os 12,7 milhões de pessoas escravizadas que foram trazidas à força da África, passando pela era Jim Crow e o encarceramento em massa de negros hoje. Stevenson, formado no Eastern College e na Harvard Law School, mudou-se para o Alabama em 1989, para investigar prisioneiros condenados injustamente no corredor da morte. O livro e o filme Just Mercy descrevem essa fase de seu trabalho.

Além do Legacy Museum, Stevenson também desenvolveu o National Memorial for Peace and Justice, que homenageia cerca de 4 mil vítimas de linchamento. As placas fornecem alguns detalhes:

“Linchado porque não disse ‘Sr.’”;

“Enforcado por escrever bilhetes para uma mulher branca”;

“Morto por responder a um balconista”…

Levaria dias para absorver todas as histórias e os fatos apresentados no museu e no memorial, mas eu tinha apenas algumas horas. Gostaria que todo americano pudesse ver essa exposição de ponta que apresenta um mal que continuamos a enfrentar. Para mim, foi um momento de solene reflexão e arrependimento. Chegando à maioridade na Geórgia da década de 1960, eu definitivamente não estava “acordado”. 

Nesta passagem adaptada de minha autobiografia, Onde bateu a luz, conto sobre meu gradual despertar para a injustiça racial. Infelizmente, isso significava aprender a desconfiar do que a igreja havia me ensinado.

Peter Ruckman é o palestrante convidado da semana. Além dos sermões da noite, que ilustra com giz colorido enquanto fala, ele conduz oficinas à tarde sobre vários tópicos. Reunimo-nos no refeitório, e nesse dia ele escolheu falar sobre raça.


Estamos na década de 1960, e o movimento dos direitos civis está nos noticiários de cada dia. Viajantes da liberdade e outros manifestantes estão exigindo o fim da exclusividade de escolas, banheiros e lanchonetes só para brancos. Ruckman usa sua oficina para defender a segregação, citando a mesma teoria da “Maldição de Cam” que eu ouvi na Colonial Hills. “Leiam vocês mesmos Gênesis 9”, diz ele. “Deus amaldiçoou Cam e seus descendentes para que fossem servos. Queridos acampados, é daí que vem a raça negra.”

(A teoria vem de uma estranha passagem em Gênesis, que fala de Noé, bêbado e nu, amaldiçoando seu neto Canaã por algum indefinido pecado de ordem sexual. “Servo dos servos seja aos seus irmãos”, declarou Noé. Segundo a teoria, o pai de Canaã era Cam, e a palavra hebraica Cam significa “negro queimado”, de modo que nessa passagem Deus estava condenando a raça negra a um futuro de escravidão. Ninguém se dá ao trabalho de observar que um Noé bêbado, e não Deus, pronunciou a maldição, e que ela se aplicava a Canaã, não a seu pai, Cam.)

Em seguida, Ruckman sorri e sai de trás do púlpito. “Vocês alguma vez notaram como pessoas de cor acabam sendo bons garçons? Observem algum dia. Elas gingam os quadris em torno das cadeiras e seguram aquelas bandejas no alto sem derramar uma gota.” Ele faz uma imitação caricata, e os acampados riem. “Vejam, esse é o tipo de trabalho em que elas são boas. Mas vocês já conheceram um negro que é presidente de uma companhia?

Já? Mencionem um. Cada raça tem seu lugar, e eles devem aceitar isso. Podemos conviver tranquilamente desde que fiquemos separados e não nos misturemos.”

Acontece que eu me tornei o queridinho da Bessie, a cozinheira do acampamento. Ela é uma enorme mulher negra que ama crianças, trabalha duro e canta enquanto prepara a comida. Enquanto Ruckman está falando, eu a vejo reabastecendo os saleiros e pimenteiros no fundo da grande sala. Ela não dá mostras de ter ouvido nada, mas eu começo a suar só de pensar nisso.

Minhas ideias sobre raça clamam por uma resolução quando leio o novo livro Negro como eu, do jornalista John Howard Griffin. Uma frase na capa descreve a premissa: “Um homem branco aprende como é viver a vida de um negro tornando-se um negro!”. Embora isso exagere a verdade, Griffin de fato se submeteu a um regime de drogas e tratamento ultravioleta a fim de tornar sua pele negra.

O livro reproduz suas experiências durante seis semanas de viagens de ônibus pelo Sul profundo, passando-se por um homem negro. Ele fala dos “olhares de ódio” que atrai no Mississippi ao pedir informações, candidatar-se a um emprego ou simplesmente tentar comprar uma passagem de ônibus. Em seu disfarce, coisas básicas que considero naturais — um lugar onde comer, onde achar água para beber, um banheiro, um lugar onde me lavar — constituem para ele um enorme desafio.

Quando a pigmentação finalmente desaparece e Griffin esfrega o rosto que de preto passa a ser rosado, tudo muda. Ele é novamente um cidadão de primeira classe, com as portas de cafés, banheiros, bibliotecas, cinemas, concertos, escolas e igrejas agora abertas para ele. “Um sentimento de exultante libertação me inundou. Atravessei a rua rumo a um restaurante e entrei. Sentei-me ao lado de homens brancos no balcão e a garçonete sorriu para mim. Era um milagre.”

O livro exerceu em mim um efeito profundo. Imediatamente, capto o absurdo do racismo baseado na cor da pele. John Howard Griffin era exatamente o mesmo homem, com sua pele branca ou temporariamente escura. No entanto, às vezes era tratado como um ser humano normal e outras vezes como um animal sujo.

Meu cérebro dói depois de ler esse livro, como dói minha consciência. Ao contrário de John Howard Griffin, eu nunca fui tratado — nem mesmo temporariamente — como se fosse uma pessoa negra. Como seria isso? No início timidamente, depois com voracidade descubro livros como Filho nativo, de Richard Wright, Homem invisível, de Ralph Ellison, e a Autobiografia de Malcolm X. Os estereótipos racistas que herdei assumem uma nova aparência. Talvez os negros “não mantenham suas vizinhanças” porque vivem em moradias decadentes que pertencem ao senhorio do gueto. Talvez eles não tenham “nenhum senso de história” devido àquilo que a história representa.

Os negros, percebo de repente, não querem ter nomes como os nossos, usar a mesma gramática e pronúncia, curtir a mesma música, usar as mesmas roupas, dar as mãos da mesma maneira, praticar a religião da mesma forma. Para os negros, “Ela acha que é branca” é um insulto, não um elogio. A cultura negra tem seu próprio conjunto de dotes naturais.

Plaque in remembrance of our soiled legacy

Para os enforcados e espancados.
Para os baleados, afogados e queimados.
Para os torturados, atormentados e aterrorizados.
Para aqueles abandonados pelo Estado de Direito.

Nós lembraremos.

Com esperança porque a desesperança é inimiga da justiça.
Com coragem porque a paz exige coragem.
Com persistência porque a justiça é uma luta constante.
Com fé porque vamos vencer.

Um dentista charlatão arrancou todos os dentes superiores do meu irmão de 16 anos sem Novocaína; ele usa dentes postiços desde então.

Quando cruzo a cerca para entrar na propriedade da igreja onde nós moramos, começo a ver minha comunidade de paranoico fundamentalismo branco e racista como sua própria espécie de cultura. Não gosto do que vejo.

Durante todo o verão uma crise de fé arde dentro de mim. A igreja claramente mentiu para mim sobre a questão de raça. E sobre o que mais? Jesus? A Bíblia?







Artigo traduzido e publicado com autorização do autor. Publicado originalmente em philipyancey.com: Our Soiled Legacy – Philip Yancey, com trechos da autobiografia Onde bateu a luz. 

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Em Onde bateu a luz, Philip Yancey apresenta uma narrativa autobiográfica peculiar, enquanto revela um segredo que o colocou na busca pela verdade sobre sua família e a cultura em que foi criado. Seu ambiente é uma América do pós-guerra em ebulição, em que o fundamentalismo religioso e o movimento dos direitos civis colidem.

Onde bateu a luz expõe matizes de um período crucial da história recente, com suas tensões, dilemas e contradições, em temas como: mudanças sociais, hostilidade racial, divisão política, guerras culturais… Mais do que revisitar contextos que reverberam nas divisões sociais e políticas de hoje, Onde bateu a luz põe em foco contrastes, em que a dor se entremeia com esperança de cura, perdão e redenção.

Onde bateu a luz está disponível em português com selo Mundo Cristão. 

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***

Outros livros de Philip Yancey lançados pela MC: 

A pergunta que não quer calar

Companhia na crise 

O eclipse da graça

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