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Democracia brasileira e liberdade religiosa

Davi Lago analisa a questão em seu livro “Brasil polifônico: Os evangélicos e as estruturas de poder”

Por Davi Lago em Brasil polifônico

O Estado Democrático de Direito, como o Brasil, estabelece os limites do poder, deixa espaço para a cooperação das instituições religiosas com órgãos públicos na forma da lei, e vice-versa, e garante as liberdades religiosas sob o fundamento da laicidade.

A sedimentação dessa liberdade religiosa é muito clara na lei brasileira. Embora o Estado seja distinto das instituições religiosas, a Constituição prevê a cooperação entre as duas esferas pelo bem público. O Artigo 19º da Constituição Federal de 1988 veda que o Estado assuma uma religião para si ou atrapalhe alguma religião de se desenvolver no corpo social, proibindo a formação de “relações de dependência ou aliança” entre cultos religiosos ou igrejas. Contudo, deixa a ressalva de que “na forma da lei” é possível a “colaboração de interesse público”.

A liberdade religiosa abrange conceitos de liberdade de crença, de culto e de organização religiosa. O Artigo 5º da Constituição determina:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] VI — é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII — é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII — ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

A laicidade do Estado não é nomeada explicitamente, mas está obviamente implícita no texto constitucional. Ela é a base filosófica do regime de liberdade religiosa. O Estado laico é aquele que se situa fora de toda obediência religiosa e deixa no setor privado as atividades confessionais.

A laicidade não deve ser confundida com o laicismo, que é a laicidade transformada em ideologia. O laicismo assume uma postura semelhante ao secularismo, ao ateísmo militante, de combate e perseguição às religiões. Definitivamente, o Estado democrático de direito brasileiro não é um estado laicista, pois a Constituição garante não só a liberdade religiosa, como prevê cooperação entre o aparato estatal e cultos e igrejas, na forma da lei. […].

A liberdade religiosa é uma liberdade pública que também abrange, por exemplo, as liberdades de vida privada, locomoção, opinião, comunicação, ensino e reunião. Certas aplicações da liberdade são secundárias em comparação a outras. Além disso, a jurisprudência mostra que há setores nos quais a liberdade é contestada e ameaçada mais do que em outros, especialmente pelo poder.

Nesse caso, surge a necessidade de uma proteção reforçada. É importante, ainda, frisar que todas as liberdades públicas se relacionam, se complementam e dialogam transversalmente, sendo que todas as suas modalidades decorrem de uma única liberdade global, que emana da dignidade da pessoa humana.

Uma implicação dessa questão é que, embora haja separação entre o Estado e as igrejas — bem como de todas as demais instituições religiosas —, verifica-se que não existe separação entre atividade política e pessoas religiosas. Nenhum cidadão pode ter seus direitos civis e políticos castrados pelo fato de ser religioso. Não importa se o cidadão é evangélico, católico, espírita, ateu, adepto do candomblé ou budista: ninguém pode ser discriminado em razão de crença religiosa e todos podem prestar concursos públicos e se candidatarem a cargos públicos, na forma da lei.

“Ninguém pode ser discriminado em razão de crença religiosa e todos podem prestar concursos públicos e se candidatarem a cargos públicos, na forma da lei.

Davi Lago

Vale destacar, ainda, que o lugar livre e sem impedimento algum para que igrejas evangélicas e católicas e demais credos religiosos expressem suas ideias, modos de interpretação do mundo e ações de transformação social é a própria sociedade civil. Os cidadãos evangélicos, espíritas, ateus ou de qualquer outra cosmovisão religiosa podem montar ONGs, agências de empreendedorismo social, projetos educativos, iniciativas humanitárias e tudo aquilo que julguem necessário e relevante para a melhoria da sociedade brasileira e da humanidade como um todo.

Nem tudo passa pelo aparato estatal. As igrejas não dependem do Estado para que possam realizar sua vocação solidária e atender demandas pontuais, concretas, dos cidadãos brasileiros em diversos pontos de nosso vasto território. As igrejas são organizadas, voluntariamente, por pessoas que comungam da mesma fé. São comunidades profundas, repletas de interconexões, espalhadas por toda a tessitura urbana e rural brasileira.

As igrejas já formam eficientes redes de solidariedade, perenes, permanentes, porque estão vinculadas à vida real das pessoas. E devem continuar nesse caminho, por razões constitucionais ou razões intrínsecas da teologia cristã. É necessário haver vigilância para que as igrejas cristãs não caiam na tentação do poder, da sanha pela autoridade, do afã pelo domínio temporal. Por isso, a necessidade de um diálogo público esclarecido é tão vital.

Sem clareza conceitual e compreensão dos aparatos jurídicos, e com preconceitos arcaicos, o debate nacional fica seriamente comprometido. Laicidade estatal e liberdade religiosa formam a base necessária para diálogos racionais e produtivos. É oportuno clarear também as três noções em termos públicos: fé, razão e diálogo.

Lago, Davi. Brasil polifônico: os evangélicos e as estruturas de poder. 1. ed. – São Paulo: Mundo Cristão, 2018. Págs. 140 a 143.

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Você acabou de ler um trecho do livro Brasil polifônico: Os evangélicos e as estruturas de poder, escrito por Davi Lago. Na obra, Davi resgata os marcos civilizatórios da sociedade moderna e os princípios da teologia política, aplicando-os à complexa realidade brasileira.

Por meio de uma rica e envolvente reflexão, o autor apresenta as influências que a tradição judaico-cristã e a reforma protestante oferecem ao arcabouço jurídico e político ocidental, razão pela qual ele estimula o heterogêneo segmento evangélico e os setores não evangélicos da sociedade a contribuírem para um ambiente de respeito e tolerância.

Apostando no caminho do diálogo e da mútua consideração, e sem deixar de lado a necessária autocrítica, o autor organiza os fundamentos conceituais e históricos que norteiam e inspiram a busca de uma convivência democrática, para o bem da nação.

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