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Igreja que dialoga: Como fazer a boa apologética?

Confira a segunda parte da entrevista com Pedro Dulci, organizador de Igreja Sinfônica

Para acessar a primeira parte deste conteúdo especial, clique aqui

Mundo Cristão: Apologética e diálogo. Dá para conciliar? Como?

Pedro Dulci: Com essa pergunta, tenho a oportunidade de introduzir o segundo alicerce de nossa teologia do diálogo e unidade da igreja. Se por um lado a convicção da graça comum é fundamental e inegociável, por outro lado, ela é apenas a metade da história. Junto à graça comum precisamos afirmar o princípio da antítese.

Enquanto a graça comum afirma que Deus fala e pode ser ouvido por todo mundo, a antítese é a noção que nos ensina que, em última instância, existe uma diferença irreconciliável entre fé e incredulidade. Tal ideia já é clássica na história da doutrina cristã, tendo sua expressão paradigmática em Agostinho de Hipona que, inclusive, interpretou toda a História como o conflito entre as duas cidades e suas devoções últimas: a cidade de Deus, com o amor a Deus direcionando o coração humano, e a cidade dos humanos com seus corações voltados aos ídolos desse mundo.

Posteriormente Groen van Prinsterer,

Abraham Kuyper e vários nomes do Neo-calvinismo desenvolveram essa noção que é, assim como a graça comum, uma doutrina teológica e um princípio orientador para o diálogo com a cultura. Contemporaneamente o britânico John Milbank reinterpretou toda a história da teoria social como também a irreconciliável oposição entre visões da realidade (ontologias) de violência (cidade dos humanos) e a visão de mundo cristã.

Enfim, disse tudo isso para ressaltar que: as pessoas envolvidas no diálogo interconfessional não podem ser ingênuas de enfatizar apenas a graça comum, e esquecer a antítese. Ainda que exista muito em comum entre cristãos e não cristãos (o que possibilita diálogo verdadeiro), também existe uma dimensão profunda que é irreconciliável (que se for ignorada, gerará indiferença teológica e filosófica). Nesse momento a apologética surge com sua importância relativa.

Uma “defesa da fé” é importante para nos lembrar dessa antítese e não deixar a graça comum engolir nossos esforços teológicos, culturais e práticos. Dizer que temos muito em comum não é, nem de longe, sinônimo de dizer que não existem diferenças. Elas existem e são irreconciliáveis. Poderíamos ir além, e eu gostaria de sugerir uma chave de leitura da igreja evangélica brasileira a partir dessas duas noções: por um lado existem grupos que enfatizam tanto a graça comum que, para eles, é indiferente ir a um culto evangélico ou nas Giras da Umbanda; por outro lado, existem grupos que enfatizam tanto a antítese que, para eles, não existe nada em comum entre eles e todos os outros grupos socais (incluindo inclusive grupos evangélicos, mas de ênfases teológicas diversas).

Não obstante,

o que é mais raro e mais urgente no Brasil são pessoas dispostas a desenvolver uma postura dinâmica (e não em cima do muro) nas ênfases de graça comum e antítese. Longe de ser apenas um exercício intelectual, tal desenvolvimento requer posturas práticas, relacionais e disposições pessoais para a unidade. Eu poderia dizer que esse é o horizonte rumo ao qual o Movimento Mosaico (Movimento relacional de unidade) tem trabalhado, mas a ceara é grande e todos os trabalhadores são bem-vindos.

Aliás, como fazer a boa apologética?

Para muitos, quando se pensa em apologética, imediatamente vem à mente debates acadêmicos entre teólogos e filósofos cristãos contra intelectuais ateus. Ou seja, a apologética reduzida à argumentação racional que descredibiliza e expõe ao ridículo aqueles que não pensam iguais a um cristão ortodoxo. Quanto a essa forma de apologética (muito difundida no Brasil), sempre me lembro de uma convicção de Francis Schaeffer: “ortodoxia bíblica sem compaixão é, com certeza, a coisa mais feia do mundo”.

Observe que nesse pensamento de Schaeffer, temos verdade, bondade e beleza unidos em uma convicção que precisa orientar nossa prática dialógica com quem não crê. Se nossa apologética reduz-se a apresentar bons argumentos (verdade) desconectados das outras modalidades da existência, estamos fazendo péssima apologética.

Nesse sentido,

acredito que a boa forma de fazer apologética é aquela que coloca o indivíduo “contra a parede” de toda a realidade (e não apenas de sua modalidade lógica). Em certo sentido aproxima-se do “espanto” frente à realidade que motivava os filósofos gregos a pensar: quando o real, em todas as suas modalidades, é exposto de tal forma que choca o indivíduo com suas crenças e práticas.

Enquanto muitas igrejas hoje, com medo de perder seus jovens e adolescentes “para o mundo”, privam estes membros da realidade, o que deveríamos fazer é jogar toda a realidade do mundo em cima da cabeça desses jovens. Só isso mostraria para eles que sua forma de vida e seus sistemas de crenças não cristãos são absurdos para lidar com aquilo que é próprio do mundo da vida.

Um exemplo para ilustrar:

a experiência de caos e insegurança que o estado do Espírito Santo viveu há poucos meses, por ocasião da greve dos policiais. Essa experiência pontual, muito específica no tempo e no espaço da história brasileira serve, dentre muitas outras coisas, para questionar vários sistemas de pensamento sobre o ser humano, o mal e o papel do governo. De uma hora para a outra, em razão da “certeza da impunidade” pela falta de policiamento, uma parcela de “cidadãos normais” se transformou em fora-da-lei.

Bem, essa realidade concreta, nua e crua precisa ser lançada sobre as pessoas para elas questionarem suas crenças sobre a doutrina da autoridade e do governo civil, da bondade e da necessidade de regeneração no coração humano, dentre outras crenças. A boa apologética é aquela que dá um “choque de realidade” nas pessoas e exige delas um critério de verificação existencial para seu sistema de crenças.

É como se falássemos:

o que sua visão de mundo tem a dizer sobre isso e como podemos produzir uma forma de vida alternativa a esse caos? Como a cidade dos homens não consegue produzir nada diferente do que a violência, resta apresentarmos o amor que orienta e dirige a cidade de Deus. Aí, então, o evangelho é pregado – após esse trabalho de apologética existencial.

A boa apologética é aquela que dá um “choque de realidade” nas pessoas e exige delas um critério de verificação existencial para seu sistema de crenças. 

Como a prática do diálogo pode ser um instrumento para o fortalecimento da fé e uma contribuição para a formação de uma igreja mais forte e dinâmica?

Construído sobre bases dinâmicas entre graça comum e antítese, a postura de diálogo pode fortalecer a fé cristã e a igreja em, pelo menos, duas maneiras: em primeiro lugar, trazer o fim aos dualismos recorrentes no Ocidente de sagrado e secular, fé e racionalidade, natureza e graça, imanente e transcendente. Isso não significa tratar como indistintos tais conceitos, mas tornar inoperante esse dualismo (um versus o outro).

Não existe nenhuma dinâmica da existência que não esteja sob o controle soberano de Cristo, então, não existe dimensão inerentemente secular, profana ou impura. Dualismo é uma forma pagã de pensar e viver, não cristã. Automaticamente, em segundo lugar, essa postura dialógica (alicerçada sobre a graça comum e a antítese) devolverá à fé evangélica a relevância pública que ela perdeu.

Justamente por afirmar demais a antítese,

preocupar-se exclusivamente com a reta doutrina e a distinção irreconciliável da fé com a incredulidade, a igreja evangélica brasileira foi se retirando do espaço público – da universidade, da mídia, da política, da educação, da ciência, da arte, e assim por diante. Todas às vezes que os evangélicos retornam ou ocupam algum desses âmbitos, eles o fazem pensando em “evangelizar através da…” arte, política, ciência, educação, etc.

Creio na importância do evangelismo, mas reduzir nossa participação nos assuntos públicos à evangelização das pessoas é, inconscientemente, alimentar um modelo dualista de sagrado e secular. Quando reconhecemos que – apesar da antítese em que estamos com quem não tem a nossa fé – podemos compartilhar de dádivas graciosas de Deus comuns a todas as pessoas, nossa postura de diálogo assume outra dimensão.

A partir do momento que começarmos a ensinar nossos jovens e adolescentes de que Cristo controla todas as esferas da vida e que existe uma forma de pensar, viver e atuar em cada uma dessas áreas que glorifica a Deus, esses jovens terão uma nova mentalidade de ministério e vida cristã. Ao invés de pensar em sua educação e carreira como “mal necessário” da vida secular para ganhar dinheiro e ocupar minha semana, os crentes munidos de tal perspectiva dialógica vão começar a reorientar toda a sua vida profissional entendida como um serviço à glória de Deus.

Não mais apenas pastores e missionários serão vocacionados, mas todo aquece que se ocupou em descobrir, entender e praticar as leis de Cristo para cada uma das esferas da vida – para a ciência, a cultura, a arte, a economia, a política, e assim por diante. 

Uma mensagem final para os leitores MC.

Por mais incômodo e ingrato que possa ser, não se canse de viver na dinâmica não reducionista de graça comum e antítese. Realmente, você não vai se encaixar nos “pacotes” ideológicos de nossa época (em todos os âmbitos). Os conservadores vão lhe chamar de progressista… os progressistas vão achá-lo muito conservador… e constantemente você será rotulado à revelia de você mesmo.

Isso não é sinal de esquizofrenia intelectual ou pessoal. Antes o contrário: é prova de que seu coração não é orientado pelas referências da cidade dos humanos. Faz muita falta hoje em dia o título que Dom Robinson Cavalcante deu a um de seus livros: o cristão, esse chato. Se nos mantivermos coerentes com esses fundamentos bíblico-teológicos que falei acima, inevitavelmente seremos tipos como esses indivíduos chatos que não desistem da relação e do diálogo, mas afirmando a antítese.

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