Skip to content Skip to footer

“O hematoma e a cura”, uma reflexão para quem está em luto

Em ocasião do Dia de Finados, convidamos Rosana Basile, integrante do mosaico de vozes do livro “Espiritualidade no chão da vida”, para escrever uma mensagem a quem está lidando com a perda de um ente querido. Se você é essa pessoa, sinta-se abraçado (a) e saiba que nosso desejo é que as palavras a seguir confortem seu coração

O hematoma e a cura 

Por Rosana Basile

A morte de alguém que amamos é uma experiência devastadora, seja a morte esperada ou repentina. É como se a alma sofresse forte golpe, que provoca dor quase insuportável e gera grande hematoma que continua doendo, não se sabe até quando.

O Dia de Finados nunca teve muito sentido para mim. Por que precisaria de um dia para deixar as atividades e pensar em alguém que já morreu? Mas, enquanto elaborava o que escreveria aqui, essa perspectiva mudou. Sei que o Rafa, meu único irmão, não está mais conosco e jamais voltará. Lembro-me dele todos os dias. Sua morte criou em mim um hematoma que ainda dói muito, mesmo após quatro anos. Qualquer coisa que alguém diz ou se propõe a fazer não me faz pensar menos nele, nem diminui a saudade que sinto.

O Dia de Finados pode ser uma data para lembrar-me de meu irmão de maneira especial. A dor do hematoma não me impede de resgatar a memória da pessoa marcante e única que ele foi para todos que o conheciam. A dor tampouco me impede de cultivar a esperança de encontrar-me com ele na eternidade, num novo céu e numa nova terra.

Diálogo com a dor

Nos últimos anos, como artista plástica, tenho me dedicado à pintura e à cerâmica. O quadro abaixo, pintado num momento de dor, dialoga de forma sensível com a dor da perda e a reconstrução do conceito de luto.

Há cores chocantes, como o vermelho sangue, o amarelo luminoso e o violeta em tom escuro, aplicado de forma inquieta, com um pincel nervoso, meio sem saber aonde ir. O branco, silenciosamente, tenta penetrar esse cenário movimentado, lugar de marcas, lágrimas e dor. A pintura propõe uma dinâmica entre luz e trevas — entre, por um lado, o “vale da sombra da morte” (Sl 23.4), o medo e a dor da ferida vermelha e do hematoma roxo; e, por outro, a luz nascente do amarelo e o branco da paz.

Hematoma – Rosana Basile
Acrílico sobre tela. 80x60cm
2022

Não se sabe quando esse hematoma começará a diminuir, nem quando se irá. Não se sabe quando o sangue estancará e a ferida começará a cicatrizar. Não se sabe quando o amarelo e o branco se encontrarão. O hematoma pode permanecer por muitos e muitos anos, talvez até o fim de nossa vida terrena e pecaminosa, mas a presença do Deus da vida no choro da morte certamente modifica sua forma.

O diálogo com o enlutado

O processo do luto merece enorme respeito e atenção. É importante que não haja cobrança em relação ao fim da dor. Não é possível apagar um imenso hematoma num tempo pré-determinado. É preciso acolher a dor e não lutar contra ela. Acompanhar um enlutado requer graça e sabedoria. Não é momento para perguntas, é momento de escuta. Para apoiar alguém que está sofrendo, é preciso oferecer tempo, nem que seja um minuto, para simplesmente sofrer junto. Quem chora a morte de alguém precisa dos abraços que agora voltam a ser possíveis e que fazem tanta diferença.

“Acompanhar um enlutado requer graça e sabedoria. Não é momento para perguntas, é momento de escuta.”

Rosana Basile

Se você está longe de alguém que sofre com as feridas da perda, esteja junto num simples telefonema. Mensagens de zap são válidas, mas nada supera o carinho do tempo dedicado a ouvir a voz do outro e interagir sem filtro com suas emoções. Deixe de lado a curiosidade — que é parte de nossa natureza humana — em prol de afeto que não cobra e não julga. Quem está sofrendo uma dor tão grande só precisa de acolhimento, não de dicas ou sugestões de ações imediatas.

Somos “barro nas mãos do oleiro” (Jr 18.6). Ainda que seja um caminho desconhecido, o luto é oportunidade de crescimento e de se aproximar do Senhor, que, de sua maneira e no momento certo, traz restauração. Deus conhece nosso coração (Rm 8.27) e sabe do que precisamos. Nos tornamos jardim com solo fértil se confiamos na soberania do Pai. Um quadro colorido que vai sendo repintado pelo perfeito Artista.

Oração da vida

Durante meu processo de luto, que segue a cada dia transformado pela graça de Deus, aprendi que a melhor maneira de me aproximar do Pai de amor, graça e misericórdia é através da oração da vida, que pode ser falada, pensada, escrita ou desenhada. O “nunca deixem de orar” (1Ts 5.17) tomou forma, saiu da tela e criou corpo. Na medida em que eu orava o que vivia — choro, tristeza, confiança, esperança —, a beleza da ação do Espírito Santo se fazia realidade em mim, e o hematoma se transformava.

Decidi representar o quadro acima com uma técnica diferente da pintura. Numa peça de cerâmica, essa dor e esse processo ganham um corpo tridimensional como o meu. Preservei a forma do hematoma e procurei repetir as cores da dor, da luz, da paz e da ferida. O resultado, inesperado pela propriedade do material utilizado, me surpreendeu. No solitário silêncio de um objeto pesado que não precisa sair de onde está, vi uma forma acolhedora que carrega, suporta e guarda. Nossas dores são únicas e pessoais, mas podem ser vividas na realidade da comunidade que acolhe e recebe com amor.

Sem título
Rosana Basile

Apesar de frágil — se cair no chão facilmente se romperá —, a escultura nos causa uma impressão de solidez e firmeza. Gosto dessa dicotomia. “Quando sou fraco, aí é que sou forte”, afirma Paulo em sua Segunda Carta aos Coríntios. A pintura é opaca, a escultura é brilhante. A pintura mostra uma face da perda, a escultura revela as várias dimensões desse processo, seus desdobramentos, suas possibilidades.

O sofrimento pode nos aproximar mais de Deus, de nós mesmos e dos outros. Basta deixarmos ser moldados, trabalhados, coloridos pela perfeita mão do Grande Criador que é soberano, conhece todas as coisas e nos conduz por caminhos em que nos seguem bondade e misericórdia (Sl 23.6). Na oração da vida, temos certeza de que, se a escultura se quebrar, o Senhor a restaurará.

***

Saiba mais!

Rosana Basile forma parte do time de autores do livro Espiritualidade no chão da vida. Escrito a várias mãos e organizado por Valdir Steuernagel, o livroconta com a participação de mais 40 autores, entre mentores e mentoreados do Projeto Grão de Mostarda (PGM), em reflexões sobre como a fé encarnada possibilita ao cristão relacionar-se com a complexidade da vida e suas demandas mais urgentes. Na obra, Rosana Basile, sob mentoria de Isabelle Ludovico, aborda o tema “O sofrimento e a intimidade com Deus”, num capítulo emocionante em que narra seu processo de luto e cura após a perda repentina de seu irmão. Para saber mais sobre o livro, clique aqui.

Rosana é mineira e artista plástica. Mãe de três meninas e casada com Davi, com quem criou o Teologarte, site que busca conectar as artes e a fé cristã.

Você pode se interessar por estes livros também:

Como Deus transforma a tristeza em alegria

O fim do sofrimento

A pergunta que não quer calar

Deixe um comentário

Inscreva-se em nossa newsletter e receba informações sobre nossos lançamentos!